sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Machado de Assis e a escravidão

Educar é um delicioso desafio. E aprender também deve ser. É a Educação que desafia e constrói que possibilita a constituição de seres pensantes. E são estes seres que conseguem encontrar perspectivas dentro de um mundo que não parece oferecê-las senão enquanto discurso. É a educação que possibilita o pensar e portanto o ser que permite ao indivíduo constituir-se como cidadão, visualizar um mundo maior do que aquele que lhe foi dado. E é esta Educação que permite ao professor ampliar seu mundo também. Thiago  Leonardo de Sousa sempre me ensinou muito sobre seu mundo, suas aflições e sobretudo, sobre seus ideais. Ele encarou o desafio de tratar um texto literário como documento histórico com seriedade. E o resultado do desafio que propus e ele aceitou, foi uma paixão: este jovem apaixonou-se pela Literatura, disciplina irmã da História. E hoje, o artigo que segue, é o resultado de alguns meses de pesquisa deste jovem historiador e educador.

Dialética da escravidão: Um olhar de Machado de Assis.
Thiago Leonardo de Sousa.


Resumo: Através da analise de Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra de Machado de Assis, se busca traçar o olhar que este autor direcionou a uma das dialéticas do sistema escravista, sendo as contradições entre o escravo e o senhor, e como seus escritos trazem a gênese da discriminação e segregação vividas hoje, pelo expoente que brotou deste processo.

Palavras-chave:  Machado de Assis, escravidão, dialética.


Vários escritores da literatura brasileira trataram da questão da escravidão, e em seus mais diversos aspectos, costumes, questões econômicas, questões sociais, Machado de Assis contribuiu de maneira significante para a apresentação deste quadro. Sendo descendente de negro e criado no Morro do Livramento, área periférica do Rio de Janeiro, Machado sentiu na pele, o que é ser este negro e a lutar por uma ascensão social. Neste artigo trataremos da visão da dialética entre senhores e escravos presente na obra Memória Póstumas de Brás Cubas.
Dialética porque trata de antagônicos, onde a tese produzida pela classe dominante entra em choque com a antítese dos elementos que compõem a sociedade e sendo esta por sua vez a própria síntese gerada. Dialética também por trazer a contradição da visão de inferioridade de quem na verdade constrói a economia, seja como mão de obra, seja como mercadoria. Por ser um plano visando riquezas, mais que em sua própria estrutura trouxe miséria, e fome no pós-escravismo, quando o escravo é alforriado vem no pacote sua exclusão social.

Na acepção moderna dialética: é o modo de pensarmos as contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação. (KONDER, 1990, p.8)

Voltemos a Machado, esse desejo de ser reconhecido e de se estabelecer como personagem importante da história da literatura, propiciou a Machado o contato com as duas realidades distintas, a da marginalização ao sentir na pele as contradições do seu cotidiano quando ainda era chamado Machadinho e criado pela sua Madrasta Maria Inês, que o ensinou seu primeiro oficio de vender doces. E como escritor aclamado coabitando com a elite intelectual da época representada pela à sociedade Lítero-humorística petalógica. Desembocando na fundação da academia brasileira de letras.
O livro Memórias Póstumas de Brás Cubas é lançado no ano de 1881, onde o autor vai trabalhar estas duas realidades, senhor versos servo, o primeiro partir da boa vida levada pelo protagonista Brás Cubas, jovem burguês, descomprometido, desejoso de status porem desde que não cause muito esforço, determinista, acredita uns nascem para glória e outros para servir e ou fracassar. O segundo na figura de Prudêncio, escravo que acompanha nosso protagonista desde o seu tempo de criança até a alforria dada pelo pai de Brás. Machado vai trabalhar esta questão a partir do ponto de vista da elite, o olhar que era lançado para tratar da questão do negro, passa pela concepção de mundo do senhor, como ele enxerga este negro, o entendimento cultural do negro a partir da visão do outro, o que foi característico deste tempo histórico, onde não havia sido dada voz aos excluídos podendo ser representada pela música Palmares, do álbum Povo Brasileiro da Banda Natiruts. “A cultura e o folclore são meus, mas os livros foi você que escreveu [...] perseguidos sem direitos nem escolas como podiam registrar as suas glórias, nossa história foi contada por vocês e é julgada verdadeira como a própria lei.”
Machado trata da escravidão em diversos fragmentos, da obra analisada, e por conta de ser a visão do dominador não coloca o negro em uma apoteose guerreira, como os contos dos quilombos com insurgências negras contra os senhores, ou mesmo a imposição cultural feita pelos negros em 1809, em Santo Amaro, no Recôncavo baiano, mais sim como um elemento que compõe as contradições de uma sociedade que passava por um processo de transformação, ou seja, o período em que campanhas abolicionistas e movimentos republicanos eclodiam na sociedade.
Período em que a sociedade decide quem pode fazer parte de sua constituição, e exclui os demais na peculiaridade de ser humano, mas mantém a característica de mão de obra com futuro incerto, em concordância com Darcy Ribeiro que fala sobre a sorte incerta, já que a princípio são tratados como mercadoria, no ato da compra e venda porem depois em posse dos senhores ficava as duvidas sobre quantas funções diferentes poderiam surgir a este “possuído”.
Configuração social que institui comportamentos, determinando valores, criando hierarquias entre os senhores, a quem ser livre traz a significância da posse como primeiro elemento, e que na infância já se educam para agirem e pensarem de forma sádica e tirânica.
Nascem, criam-se e continuam a viver rodeado de escravos, sem experimentarem a mais ligeira contrariedade, concebendo exaltada opinião de sua superioridade sobre as outras criaturas humanas, e nunca imaginando que possam estar em erro (FREIRE, 1987, p. 337).

Esse sentido de posse por parte do senhor vem se justificando a partir de questões religiosas, com afirmações do tipo, “o negro não tem alma” ou “devemos dotar este negro dos bons costumes cristãos”. De denominações cientificas, onde as correntes filosóficas, como o determinismo, o positivismo, e o evolucionismo, acabam por gerar múltiplas interpretações, e de preferência servindo a classe dominante, como no caso de Herbert Spencer e a criação do Darwinismo Social, com sua celebre frase “sobrevivência do mais apto”, (STRATHERN, 1998, p. 41). Ou por fim as questões jurídicas de direito.
        
O que atuou eficazmente em todo esse período de construção do Brasil como Estado autônomo foi um ideário de fundo conservador; no caso, um complexo de normas jurídico - políticas capazes de garantir a propriedade fundiária e escrava até o seu limite possível. (BOSSI, 1992. p. 179)
Retornando a questão das teorias evolucionistas como justificativa, figura um capitulo intitulado Borboleta preta, onde através de uso simbólico, Machado expões como os donos de escravo justificavam seu papel social, a inferioridade do negro é motivo predominante para que se escravize.  Esta inferioridade vem desde o nascimento e das características herdadas ao nascer. Todos agem predeterminados, em concordância com seu tempo e as relações sociais que o cercavam.
Na dia seguinte, [...] entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra [...]. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. [...] negra como a noite. [...] Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. [...]. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.
— Também por que diabo não era ela azul? disse comigo.
E esta reflexão, [...], me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. [...] Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última idéia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas... Não, volto à primeira idéia; creio que para ela era melhor ter nascido azul. (ASSIS, 1997, p. 79)

No capitulo o Vergalho Machado continua a elaborar acerca do determinismo e avança para a questão do escravo urbano e o reflexo de uma escravidão além da senzala, uma escravidão interna que transformava, acabava por gerar uma submissão desse negro que mesmo liberto ainda mantinha uma identificação e uma especie de gratidão ao senhor. Assim desprovido da capacidade de identificar no negro uma matriz comum a sua, desejoso de compor a parcela social expoente do poder, muitas vezes quando em liberdade repetiam as mesmas condições a que foram submetidos na escravidão, não havia a reflexão de sua parte sobre a injustiça e sim uma repetição de tratamento recebido. Acreditando que ao se colocar como carnífice do outro, como se colocaram a ele em tempo de cativeiro, tentando se tornar parte da sociedade que o excluía, buscava o status do que, ideologicamente, se considerava superior.

[..]Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.[...] Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes.
Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
— É, sim, nhonhô.
— Fez-te alguma coisa?
— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado! (ASSIS, 1997, p.131)

Machado continua a reflexão sobre como a reação de Prudêncio é reflexo dos castigos que o próprio Cubas dirigia a ele, porém sem remorsos chega a ironicamente justificar seus atos e de Prudêncio, de acordo com os moldes da sociedade, age como se espera que se façam os senhores, sendo livre faz aquilo permitido a qualquer pessoa em sua condição, adiquire escravos, e conforme aprendera, seu igual, em tempos anteriores, era agora menos que ele, era objeto e não uma pessoa, imputa ao seu cativo o mesmo mal de que padecera em tempo de escravo.

Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto! (ASSIS, 1997, p.132)

Ainda nos termos de justificação, Machado se utiliza da figura do Cotrin, Cunhado de Brás Cubas, para demonstrar que a analise feita destes homens, que se beneficiavam do modelo escravocrata, se baiseia na condição de homens de seu tempo e agiam conforme a sociedade lhes imputava, em um determinismo do qual não se escapa.

Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com freqüência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. (ASSIS, 1997, p.198)

Estas realidades coexistiam na mente de Machado, questões que permeavam o relacionamento, em um espaço geográfico comum, mais em ideais de mundo muito distantes, pois se de um lado um aprende desde de pequeno a inferiorizar o diferente, o outro aprende, com valores forjados a se submeter ao outro. Essa não compreensão mutua, de artistas que compoe uma mesma realidade, mesmo que em papéis tão descrepantes um dos outros, acabou por gerar processos de inferiorização visto até hoje.

Os negros foram inferiorizados. Foram e continuam sendo postos nessa posição de inferioridade por tais e quais razões históricas. Razões que nada têm a ver com suas capacidades e aptidões inatas, mas sim, tendo que ver com certos interesses muito concretos. (RIBEIRO, 2008. p.16)

Vários elementos como a falta da composição de uma identidade étnica pelos escravos, o agrupamento em torno de um ideal comum e a gestação de uma resistência que faça valer os direitos de liberdade “conquistada”, somados aos modelos de justificativa da escravidão e que hoje justifica o preconceito, já que as ideologias sobreviveram através de outras mascaras, terminologias e formas de expressão, que associam ao negro qualquer mazela, sem citar a grande quantidade de piadinhas infames. Acaba por gestar uma sociedade que mediante interesses econômicos, continua a se esforçar por manter a sociedade nesta contradição entre desenvolvimento e exploração, Tudo em nome da mais velha do que boa manutenção do poder.
Bibliografia.

ASSIS, Machado. Memória Póstumas de Brás Cubras. São Paulo: O Estado de São Paulo/Klick, 1997.
______Pai contra a Mãe. In._____. Relíquias da Casa Velha. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000107.pdf Acesso em 23/03/2010.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização: A escravidão entre dois liberalismos, 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

KONDER, Leandro. O que é Dialética. 25. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.

FAUSTO, Boris. Historia do Brasil. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fundação para o Desenvolvimento, 1996. p. 142-152.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, 25. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. p. 409-461.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

RIBEIRO, Darcy. Sobre o obvio. In._____ Políticas Públicas sociais e os desafios para o jornalismo. São Paulo; Cortez, 2008.

STRATHEN, Paul. Darwin e a Evolução em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

SANTOS, José Rufino dos. O que é Racismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.

TRÍPOLI, Mailde J. Machado de Assis e a Escravidão. Disponível em http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/setembro2008/ju408_pag02.php, Acessado em 29/03/2010.

MORAES, Renata Figueiredo. Pai contra a mãe: a permanência da escravidão nos contos de Machado de Assis Disponível em http://www.labhstc.ufsc.br/ivencontro/pdfs/comunicacoes/RenataMoraes.pdf
Acessado em 29/03/2010

Um comentário:

  1. A análise acima está excelente, ela somente tende a não ir além dos limites propostos pela obra de Machado de Assis, porque isso em si mesmo não é o objetivo deste tema.

    Em momento algum será necessário dizer mais que a falta dos fatores de motricidade, presentes nas atitudes dos grupos conscios de si, foi a mola propulsora de todas as miserabilidades ligadas a esta forma de escravidão recente, ou mesmo as demais formas de escravidão que compuseram outros cenários, em outras sociedades - excetuando-se, é claro, as falsidades históricas tão próximas de raças ditas eleitas, e coisas do tipo.

    E a essência desta falta de motricidade, liga-se diretamente com a condição presente nos costumes originais dos povos tornados escravos, que uma vez usados para desencadear os hábitos deste ou daquele povo, vieram a ser os modelos de sustentação da escravidão, sobretudo daquela que existiu até o século XIX no Brasil, e em outras partes do mundo, sendo explorados e aproveitados pela igreja, pelos verdadeiros donos dos negócios de vendas de escravos os quais eram aparentados com os donos dos navios negreiros.

    Tudo, como diz o texto, em nome do poder e de quem molda a moda popular a seu bel prazer, mesmo que, distorcida, esta seja vendida como verdade absoluta em livros de história, como podemos notar no que tange ao cosciente, quantidade, e tipos de vítimas do segundo conflito mundial do século XX.

    Abraços.

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